Há uma década o fotógrafo e artista visual paraense Dirceu Maués vem expandindo os horizontes de sua criação poética e fotográfica por meio de experimentos sucessivos com câmeras artesanais. Ele começou a produzir no contexto da Associação FotoAtiva, em Belém (PA). Criada por Miguel Chikaoka na década de 1980, a FotoAtiva colaborou com a formação de diversos fotógrafos a partir de oficinas de câmeras de orifício oupinhole, termo em inglês que se refere ao buraco (hole) feito com alfinete (pin) por onde passa a luz para projetar a imagem na câmara escura. Esse tipo de equipamento pode ser construído por qualquer pessoa e dispensa o uso de objetiva.
Maués foi apresentado ao Brasil por Fotografe, na edição 102, de março de 2005, na qual foi mostrado o ensaio Ver-o-Peso pelo Furo da Agulha, que trata do tradicional mercado de produtos amazônicos em Belém (PA). Oito anos depois, ele volta às páginas da revista com o trabalho Extremo Horizonte, que reúne imagens panorâmicas realizadas em diversas partes do Brasil.
Entre os dois trabalhos, muita coisa se passou na trajetória de Dirceu Maués. O artista flertou com o vídeo e com a instalação ao criar obras audiovisuais a partir de fotografias capturadas com pinholes feitas com caixa de fósforos. O vídeo …feito poeira ao vento…, de 2006, por exemplo, foi realizado novamente no Ver-o-Peso, a partir de uma mesa redonda instalada em uma das partes mais movimentadas do mercado.
Foto: Dirceu Maués
Cada frame é composto por uma foto, e as imagens sucessivas foram sendo tomadas a partir de pinholes posicionadas na beirada da mesa. A obra resultante reúne 991 fotografias, completando uma volta panorâmica de 360o. Conforme o percurso é feito, percebe-se a passagem do tempo e a evolução dos eventos no mercado.
O vídeo foi selecionado para a mostra VideoBrasil e rendeu a Maués uma residência artística na Alemanha. Nesse período, ele concebeu uma nova obra, chamada Em um Lugar Qualquer – Outeiro, em que o princípio da imagem panorâmica foi novamente trabalhado. Em vez de fazer uma volta de 360o na paisagem, Dirceu montou seis câmeras nas extremidades de uma estrutura hexagonal, contando com a ajuda de amigos para fazer as capturas.
A obra resultante ganhou forma de instalação, na qual os vídeos gerados pelas diferentes câmeras eram projetados em diferentes telas. A experiência foi refeita em Alexanderplatz, praça que fica no coração de Berlim, na Alemanha.
Recentemente, Dirceu Maués voltou à fotografia sem deixar de aprofundar o flerte com o cinema e com a imagem panorâmica. Passou a realizar a série Extremo Horizonte, iniciada em Brasília, cidade onde ele reside atualmente. O trabalho já lhe rendeu uma bolsa de residência na Holanda e foi um dos escolhidos pelo 120 Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, cujo resultado foi divulgado no final de 2012.
Como para a maioria de seus trabalhos, Dirceu Maués desenvolveu uma câmera especialmente para fazer as fotos de Extremo Horizonte. Uma não, diversas. O primeiro protótipo foi sendo “aprimorado” até chegar ao resultado que o fotógrafo desejava.
O artista, para usar os conceitos do filósofo Vilém Flusser no livro A Filosofia da Caixa Preta, não se contenta em operar aparelhos que já vêm prontos de fábrica. Ele prefere conceber seus próprios dispositivos, criando com isso novas formas de fotografar.
O princípio por trás da câmera usada em Extremo Horizonte é bastante simples, mas as imagens que ela gera são de grande complexidade. Maués montou uma câmera pinhole 35 mm que permite avançar o filme enquanto ele é exposto, registrando imagens que podem se estender até o limite de um rolo de 36 poses. Funciona com o mesmo princípio de outras câmeras panorâmicas convencionais. A diferença é que o avanço do filme é controlado manualmente, dependendo das condições vividas pelo fotógrafo em campo.
O primeiro modelo de pinhole idealizado pelo fotógrafo paraense para o projeto usava uma chave para o avanço do filme. O giro, no entanto, ficava restrito pela mobilidade da mão. A solução bastante caseira e eficiente foi a de colocar um prendedor de roupas na chave, transformando-a em uma alavanca que pode ser girada apenas com o uso do dedo indicador, sem limite de movimento.
Maués coloca a câmera em um tripé, que permite a movimentação no eixo horizontal, por meio do giro da cabeça. A combinação entre o avanço do filme e o giro da cabeça do tripé pode gerar os mais diversos resultados, dependendo se a câmera é movimentada no mesmo sentido do filme ou não. “
Construir a própria câmera significa estar livre das amarras de um modelo que lhe é imposto pela indústria. Significa poder experimentar uma enorme gama de novas possibilidades que o processo permite a partir de um projeto muito pessoal de construção da câmera e das características que são escolhidas para ela”, pondera Maués em seu trabalho de conclusão de curso em Artes Plásticas na Universidade de Brasília, apresentado no final de 2012 em conjunto com as imagens da série Extremo Horizonte.
Nesse tipo de produção, não importa obter a imagem mais nítida e perfeitamente exposta. São os próprios imprevistos e “erros” que contam para imprimir nas imagens a fagulha luminosa do acaso. Cada imagem tem suas próprias características e contingências, segundo o processo de criação. Por isso, as panorâmicas da série Extremo Horizonte variam tanto de tamanho e de aparência.
Para Dirceu Maués, parte de seu interesse atual pelas câmeras artesanais pode ter raízes nas brincadeiras da época de criança. “Tive a infância permeada por esse mundo da improvisação frente a necessidade e a precariedade dos meios. Aprendi desde cedo a construir meus próprios brinquedos: cidades inteiras feitas sobre o chão de barro do porão da casa, em que os tijolos velhos eram empilhados para virarem prédios. Carros eram feitos de caixas de fósforos, aviões eram recortados do isopor da caixa de ovos, ruas raspadas no chão com pedaço de madeira, cercas feitas de palitos de picolé”, conta o fotógrafo.
Mas não se trata de saudosismo. A fotografia artesanal de Maués é uma forma de criação poética que não se opõe à tecnologia digital. Ao contrário, ele se serve do digital para tornar possível o que antes era impraticável. Para serem impressas em tamanho maior do que o negativo, as imagens da série Extremo Horizonte precisam ser digitalizadas. Esse é um dos processos mais trabalhosos e demorados, pois o negativo é escaneado por partes que depois são montadas por meio do Photoshop.
A tecnologia também é usada para a divulgação do trabalho. Dirceu Maués criou uma página no Facebook exclusivamente para postar imagens da série (www.facebook.com/extremohorizonte). As fotos são acompanhadas de comentários e também há espaço para postar material de making of.
Ao longo da série, prevista para terminar em junho de 2013, o fotógrafo terá registrado a paisagem urbana de 10 metrópoles brasileiras: Belém (PA), Fortaleza (CE), Brasília (DF), Salvador (BA), Recife (PE), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS). Ele já passou por cinco cidades.
A divulgação realizada via Facebook tem criado um ambiente colaborativo que ajuda o fotógrafo no seu desenvolvimento. Maués conta que colegas e amigos oferecem hospedagem em suas casas quando ele anuncia que irá passar pela cidade. É o caso de Roberto Traplev, que ele conheceu por meio da internet e que o recebeu em Recife.
“É muito mais interessante do que ficar ‘ilhado’ em um hotel. Não pela questão financeira, pois com o dinheiro do Prêmio Marc Ferrez posso bancar as estadias. O legal de ficar na casa de conhecidos é o ambiente acolhedor e propício a discussões sobre fotografia. O trabalho também evolui nessa relação de troca”, explica.
Dirceu Maués desenvolve outras séries em paralelo, sempre incorporando o acaso, o imprevisto e as novas abordagens e questionamentos sobre o gênero da paisagem. Na série chamada de Quimigramas, ele experimenta com químicos de revelação sobre papel fotossensível, criando imagens abstratas que lembram paisagens. Tudo é feito de forma “errada” para gerar resultados surpreendentes. O fixador pode ser aplicado antes do revelador. São usados pincéis para aplicação localizada.
Já a série Sombras e Solidões, que esteve entre os finalistas do Prêmio Conrado Wessel 2012, é feita a partir de fotografias tiradas da janela do carro em diferentes cidades. Maués brinca com a subexposição, deixando que algumas texturas da paisagem urbana saltem do escuro, e fotografa no “susto”, segundo as surpresas e impressões suscitadas no próprio trajeto. Esses trabalhos também são divulgados na página pessoal do fotógrafo no Face. Ele acredita que o compartilhamento pode ajudá-lo a amadurecer as ideias. Questionado sobre a exigência de que uma obra ou uma série seja inédita para a inscrição em prêmios, concursos, convocatórias e editais, ele é bastante crítico.
“Essa exigência de ineditismo é muito relativa. O Brasil é tão grande que uma obra exposta em Belém permanece inédita em São Paulo ou em Porto Alegre. Além disso, uma fotografia que é postada no Facebook não foi exposta. Um trabalho na internet é apenas uma referência, não é o trabalho em si. Para ser exposta, uma fotografia precisa ser impressa, montada e pendurada, senão precisa ser projetada, no caso de um vídeo ou de uma instalação; aí sim ela deixa de ser inédita”, argumenta.