É verdade que o mercado de livros de fotografia ganhou fôlego com as leis de incentivo fiscal direcionadas à cultura. Mesmo assim, muitos fotógrafos brasileiros de relevância ainda necessitam de publicações que revelem suas obras de maneira substancial. Esse era o caso de Nair Benedicto, fotógrafa em atividade desde a década de 1970, com valiosas contribuições sobre temáticas sociais. Ela já havia publicado alguns livros ao longo da carreira, mas carecia de uma publicação autoral “de peso” que reunisse um número significativo de fotos suas. Essa demanda foi parcialmente atendida com o lançamento de Vi Ver.
O livro teve origem no festival FestFoto PoA, realizado em Porto Alegre (RS). A cada edição, os organizadores do evento homenageiam um fotógrafo com uma exposição acompanhada de lançamento de livro. Nair Benedicto foi a escolhida em 2012. “Percebi que havia no ar uma intenção de que fosse feita uma retrospectiva. Pensei: não, retrospectiva é coisa para gente morta”, brinca ela.
Nair encarou a criação do livro como uma missão de grande responsabilidade ética e estética. “Não queria um apanhado de fotos soltas. Busquei construir um conceito para o livro. Até porque sabia que seria feito com dinheiro público e com isso não se brinca”, diz.
Mesmo sem ter um caráter retrospectivo, o livro Vi Ver surgiu de um mergulho nos arquivos da fotógrafa, do qual ela acabou por emergir com muita coisa inédita, cerca de 50% das fotos reunidas na publicação. “Quis puxar o fio do tempo. Nesse processo, algumas fotos foram se impondo. São fotos que extrapolam o momento em que foram feitas e se apresentam como documentos da história do Brasil”, conta a fotógrafa.
O processo de criação do livro durou um ano e teve um intenso envolvimento da fotógrafa. Dele participaram também os colegas de profissão e amigos de longa data, como Juca Martins (companheiro na formação da histórica Agência F4, em 1979), Ricardo Azoury, Fausto Chermont e Salomon Cytrynowicz.



Amazônias
O livro Vi Ver está dividido em duas partes. Na primeira, intitulada “Amazônias”, são mostradas imagens da região, registradas entre 1982 e 1997, período em que Nair fez várias viagens à floresta, muitas delas acompanhando equipes de documentaristas da BBC de Londres, para quem produzia material usado em livros e na divulgação dos documentários.
Nair viu de perto parte do processo de colonização da Amazônia financiado pelo governo brasileiro, cujos principais problemas deixados foram o desmatamento e o processo de aculturação dos índios. O olhar da documentarista consegue mostrar essa ocupação desordenada de maneira terna, por meio de uma aproximação intensa com os envolvidos nessa situação.
“Vi nascer povoados que hoje são grandes cidades. Desde as pessoas capinando para limpar o terreno até o surgimento das primeiras casinhas. Durante o resgate daquelas viagens, essa experiência de retratar a Amazônia quando pouco gente tinha estado lá foi aparecendo como algo muito forte e por isso acabou resultando na primeira parte do livro”, diz a fotógrafa.
Nair aventurou-se pelos garimpos da região de Serra Pelada, no sul do Pará. Se há a denúncia da destruição da floresta com o avanço do extrativismo, não há maniqueísmos. Ela apresenta também o lado humano do garimpo, o trabalho pesado e os raros momentos de lazer, em bares e casas de prostituição. Graças à facilidade no trato com as pessoas, Nair conta que nunca sofreu nenhum tipo de constrangimento entre os garimpeiros.



“Um dos primeiros lugares fotografados nessas cidades de garimpo foram os prostíbulos, por conta do meu envolvimento com a questão da mulher. Lá, as moças me contaram que os garimpeiros eram muito carinhosos. Depois, pude constatar. Nunca senti temor por estar lá fotografando. Ora ou outra vinha um garimpeiro me falar, ‘olha, guardei um pedacinho de frango para a senhora’, isso em um lugar onde tudo era literalmente vendido a peso de ouro”, recorda.
Uma das fotos de maior impacto mostra o corte de uma árvore de enormes proporções. Aquele acontecimento em particular ficou registrado na memória de Nair por conta de um desfecho trágico. “Quando uma árvore dessas cai, ela leva centenas de outras árvores menores junto. Ao chegar no chão, parece que o tremor causado te empurra para o alto. É algo impressionante. Um engenheiro vai junto e delimita uma área onde pessoas não podem ficar, por conta do risco. Naquele dia, por intuição, dei dois passos para trás quando a árvore começou a cair e um rapaz que estava do meu lado acabou não dando a mesma sorte. Foi uma coisa atroz”, relata.
O livro traz diversas imagens realizadas entre os índios caiapós e arara, sendo que este último grupo havia tido o primeiro contato com a “civilização” há apenas dois meses. Das experiências com os índios, Nair recolheu histórias deliciosas e fotografias memoráveis, como a das crianças caiapós brincando na beira de um igarapé em meio a uma nuvem de borboletas amarelas.
“Nessa ocasião, estava fazendo uma matéria sobre os caciques da Amazônia. Fui até esse local e esperava pelo cacique da tribo para fazer uns retratos dele. Ele chegou com uns óculos escuros enormes, pois estava com um tersol horrível no olho. Desisti. Quando começava a me desanimar com a situação, apareceram as crianças, a cena se mostrou para mim e fiz a foto”, conta ela.
