Ao olhar a imagem Óculos e cachimbo de Mondrian, de André Kertész (1894- 1985), feita em 1926, uma simples composição dos óculos do artista holandês e seu pequeno cachimbo apoiado no cinzeiro, talvez não se dê muita importância. Já Armando Prado, fotógrafo e pensador paulistano, enxerga nela um pequeno tableau, algo que merece ser estudado. E que por trás desse conteúdo minimalista existe muita coisa.
A palavra francesa tableau, muito usada no século 19, foi reverenciada em culturas importantes, em que uma composição, encenada, alude a uma pintura e também à própria imagem em si. É uma oportunidade para um exercício conceitual formado em outras vertentes, como a pintura, a literatura ou a música. Nas palavras do próprio Armando Prado, nessa imagem de Kertész “ pensase sobre o mundo, sobre as pessoas e sobre a essência da vida”.
Prado começou no fotojornalismo na década de 1970. Passou pela moda e pela publicidade. Hoje, celebra seus quase 40 anos de carreira na essência de uma expressão fine art. Aos 61 anos de idade, expõe em São Paulo Coisas como elas são, retrospectiva na Galeria Fauna, em cartaz até o final de junho de 2013.
A mostra reúne uma seleção de 12 ampliações de grandes formatos, extraídas de pequenos polaroides, O fotógrafo Armando Prado em retrato feito por Juan entre suas milhares de imagens produzidas entre 1977 e 2008. A palavra- chave para a exposição (e para a história do fotógrafo) se resume a SX-70, uma pequena câmera instantânea criada em 1972 e fabricada até 1981 pela Polaroid Land.

Blow-up
Em 1970, Armando Prado, como muitos paulistanos da então classe média alta, foi estudar Economia, um dos cursos das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Na época, no recém-criado Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) destacava-se o historiador, crítico de arte e curador Walter Zanini (que morreu em janeiro de 2013). Ele era responsável, entre outras coisas, por mudanças no perfil do museu que atraíam os interessados em arte. Programas como o Jovem Arte Contemporânea (JAC) buscava por estudantes, como Armando Prado.
Também era tempo de filmes como Blow-up, do diretor italiano Michelangelo Antonioni (1912- 2007), que trazia como protagonista um fotógrafo de moda. Baseado em um conto criado pelo argentino Julio Cortázar (1914-1984), o filme também agregou em sua construção a vida real do fotógrafo londrino David Bailey.
Embora Blow-up seja uma trama de suspense, o mito Bailey já estava em construção na chamada “Swinging London”, a efervescência cultural da capital inglesa dos anos 1960. Armando Prado conta que o personagem foi marcante, a ponto de ser notícia a separação do fotógrafo inglês da mulher, a top model Jean Shrimpton. Para essa geração brasileira interessada em arte, um fotógrafo que vinha do subúrbio londrino de Leytontone, filho de um alfaiate, que chegou a faturar milhares de libras por ano, era o sonho de consumo daqueles que “viam na fotografia uma profissão charmosa e contemporânea, uma fuga da rotina, com a possibilidade de ganhar muito dinheiro”, lembra Prado.

Diane Arbus
Os filmes foram tomando o lugar dos números à medida que Prado passava a se distanciar de economia e se aproximava de escolas antológicas como a “enfoco”, criada por Claudio “Clôde” Kubrusly – por onde passaram nomes importantes como Hilton Ribeiro, Améris Paolini, Dulce Soares, Leonardo Crescenti, Lily Sverner, Mazda Perez, Nair Benedicto, Rosa Gauditano, Zé de Boni, Ella Durst, entre outros.
Prado não era aluno, mas frequentava a excelente biblioteca do famoso sobrado na Rua Batatais, 492, no bairro dos Jardins. Foi lá que tomou contato com o livro Diane Arbus: An Aperture Monograph, publicado em 1972. “A coleção de monografias, bem como a revista trimestral Aperture, foi importantíssima para toda essa geração dos anos 1970. Diane Arbus foi a primeira fotógrafa que me impressionou”, conta ele. Editado por Marvin Israel (1924-1984), um dos mais criativos diretores de arte, o livro traz o trabalho seminal da célebre norte- americana, nascida em Nova York em 1923 e que se suicidou em 1971.
Prado conta que já tinha interesse em fotografia há algum tempo. “Meu pai assinava revistas como Realidade eLife, que traziam grandes reportagens fotográficas”. Herdou também o hábito da leitura, o que fazia com que ficasse muitas horas na antiga Livraria Teixeira, da Rua Marconi, no centro paulistano, vizinha ao consultório de seu pai, um dentista. Desde então, as coisas passaram a caminhar juntas e assim estão até hoje: Prado dirige uma série de workshops destinados a análise da imagem fotográfica por meio de livros clássicos.
Na visão desse fotógrafo-educador, Diane Arbus coloca muitas questões filosóficas para a fotografia com suas imagens contundentes. Prado faz uma comparação com o cineasta alemão Michael Haneke, autor do recente Amor e de outros filmes badalados pela crítica, como Caché (2005) e La Pianiste (2001). Para o fotógrafo, Arbus e Haneke sabem “tocar nas feridas, são provocadores”.


Fotojornalismo
Embora as referências ao cinema sejam frequentes em seu vocabulário, a música foi a primeira afinidade da fotografia. Largou a faculdade e foi trabalhar na extinta revista Música. “Lá estavam profissionais como Paulo Kawall, por muito tempo fotógrafo exclusivo da cantora Elis Regina (1945-1982) e Paulo Vasconcelos, sócio do Rômulo Fialdini”, recorda. A companhia não podia ser melhor, e Prado seguiu fazendo capas para discos da cantora Celly Campello (1942-2003) e para bandas como Mutantes e O Terço, representantes do rock nacional.
No Brasil, os anos de 1970 ainda reverberavam a década passada das culturas americana e europeia. Mas trouxeram mudanças marcantes, algumas situadas no jornalismo diário representado pelo vespertino Jornal da Tarde, que se firmava na linha do new journalism. Criado em 1966, era uma revolução gráfica, comparado ao carro-chefe da família Mesquita, O Estado de S.Paulo, muito mais conservador.
Foi nesse clima de mudanças, em que as imagens começavam a ganhar grande espaço na mídia diária, que Prado iniciou a carreira como fotojornalista no JT em 1977 – trabalho que duraria até 1979, quando eclodiu uma grande greve dos jornalistas. O fotógrafo não foi demitido, como muitos dos colegas, mas deixou o jornal em solidariedade aos companheiros. E também por achar que precisava mudar.
Ele recorda que naquela década, a redação do JT tinha nomes de peso no jornalismo nacional. Entre os fotógrafos reinavam Reginaldo Manente, Oswaldo Palermo e Domício Pinheiro (1921-1998). Além disso, o jornal também foi pioneiro em ter um editor para a fotografia, Milton Ferraz, ex- revista Realidade.“Vivia recebendo broncas do Manente, que me chamava de foca (aprendiz)”, lembra ele.
O JT do foca Armando Prado tinha uma peculiaridade: a equipe era formada por fotógrafos famosos oriundos de revistas importantes. Ferraz, hoje dono de uma produtora de filmes, conta que profissionais eram contratados a peso de ouro. Eram tops na carreira, maduros e ganhavam dois salários, um pelo Estadão e outro pelo JT. Assim, ser um fotógrafo jovem naquela época não era fácil. “Mas os novatos, como o Prado, eram necessários para incentivar os mais velhos, fazer uma pressão”, diz Ferraz.

SX-70 e moda
A greve dos jornalistas em 1979, apesar de ter fracassado, provocou a demissão de vários fotógrafos, entre eles os celebrados Marcos Magaldi e Paulo Leite, que faziam parte da chamada “classe universitária” da redação. Prado, então com 28 anos, se demitiu e foi começar uma vida defreelancer. Não na imprensa, mas em uma empresa de audiovisual que, curiosamente, já tinha colaboradores que viriam a se tornar ícones do fotojornalismo independente, como Juca Martins e Ricardo Malta, fundadores da Agência F4.
Foi aí que ele incorporou ao seu equipamento a charmosa SX-70, que passou a fazer parte da vida dele. “Para mim, não havia nada mais divertido do que ver uma imagem saindo na hora. Bastava apertar o botão”, afirma. Mas esse simples exercício lúdico dava vazão a um questionamento sobre a imagem fotográfica que iria nortear seu trabalho ao longo dos anos seguintes. “É como aquela imagem do cachimbo feita por Kertész”, diz, apontando para o cinzeiro durante a entrevista exclusiva para Fotografe.
Depois de dois casamentos e quatro filhos, a necessidade de ganhar dinheiro, coisa que o fotojornalismo pouco permitia, acabaram direcionando o fotógrafo para outro segmento: o ambiente fashion. Prado foi trabalhar na revista Claudia, que tinha como editora de moda a italiana Costanza Pascolato, outro ícone relacionado à fotografia. Entretanto, ele logo mudou para a edição brasileira da famosa Vogue, à época comandada pela família Carta.
Ir para a Vogue, conta Prado, foi por uma questão muito simples, pois a revista pagava por páginas publicadas. “Era mais rentável, mais interessante economicamente para quem tinha quatro filhos para alimentar”. Mas o melhor é que a revista era uma vitrine de seu trabalho. E agências de publicidade notaram suas fotos. Embora ele já tivesse uma forte afinidade com o fine art por causa da SX-70, o trabalho em moda e publicidade dominou o cenário. Prado montou um grande estúdio no centro de São Paulo, com muitos funcionários, que manteve de 1984 a 2002.
Ele atendia Almap, Talent e DPZ, entre outras grandes agências. Mas acabou rompendo com o meio e se desfazendo de tudo. Explica: “Esse tipo de trabalho é cruel. Depende essencialmente de você, que tem de estar atento o tempo todo. Mas surgiam os problemas do dia a dia mesclados com outros particulares, como uma separação, e resolvi fechar o estúdio. Passei a usar um alugado, mudei para um flat que mal cabiam meus livros e atendia um ou outro cliente, sem muitas despesas”.

Fine art
Essa mudança radical coincidiu, entretanto, com o resgate da SX-70, que passou a ser um objeto cult mundo afora. Surgiu daí a ideia de montar um coletivo, juntamente com Marcelo Palota, Ricardo Van Steen, Paulo Vainer, Claudio Elisabetsky, Fernando Costa Neto e Roberto Wagner. Prado então ficou definitivamente no fine art. O grupo seria consagrado em uma histórica mostra na Galeria Vermelho, uma das mais ligadas à fotografia contemporânea brasileira.
Paralelamente a essa nova linguagem, o lado de educador também aflorou e Prado passou a dar aulas nas universidades Metodista, Anhembi Morumbi e FAAP. Como pensador, acabou se desiludindo com o meio. Ele diz por quê: “É incrível o tratamento dado hoje pela universidade ao aluno. É a ascensão do aluno-cliente. O aluno tem sempre razão”.
Admirador explícito de fotógrafos como Walker Evans (1903-1975) e William Eggleston, Prado confessa que sempre quis ser um escritor. Mas reconhece que toda essa metafísica do discurso fotográfico contemporâneo não está levando a nada. “Prefiro os textos do John Szarkowski (1925-2007), que foi curador do MoMA e que define muito bem, sem um vocabulário difícil, a imagem contemporânea. Esse francesismo de Barthes (Roland, 1915-1980) e Rouillé (André) me cansa”, desabafa.