A manipulação da fotografia é um dos meios mais criativos na era da imagem digital. Entretanto, a ideia vem de muitas décadas atrás e até ganhou uma belíssima exposição em outubro de 2012, no Metropolitan Museum of Art, de Nova York: Faking It: Manipulated Photography Before Photoshop, organizada por Mia Finema, curadora assistente do museu. No Brasil, dois livros de celebrados fotógrafos da chamada fine art chamam a atenção para o assunto: Entre Morros (Cosac Naify, 2012), da carioca Claudia Jaguaribe; e Repaisagem São Paulo(Porto de Cultura, 2012), do paulistano Marcelo Zocchio.
Se já no tempo de Marc Ferrez, (1843-1923) se pencomplementasava em modificar o factual, o visível e subverter a ordem realista da imagem fotográfica, uma mídia então novíssima, com o passar dos anos (e o desenvolvimento dos softwares) isso só aumentou. Há desde trabalhos sem nenhum sentido a outros muito criativos, como os produzidos por Claudia Jaguaribe e Marcelo Zocchio, cuja inserção na fine art teve uma trajetória cuidadosa e lenta, o que trouxe solidez a ambos os livros, fruto de muito trabalho e pesquisa.
O comum entre eles é somente o fato de que ambos trabalham com fotografia e a manipulam em softwares de última geração. Também man – tiveram concepções pessoais, mas recorreram à ajuda de um outro profissional, cujo nome vem aparecendo significativamente junto com o do autor: o especialista no tratamento de imagens. Zocchio produziu primeiro imagens em baixa resolução e deixou a execução em alta para o escritório de José Fujocka, mestre no assunto, e Jaguaribe, de maneira inversa, primeiro recorreu a ele, passando depois a finalizar os trabalhos com sua própria equipe.

Os dois trabalhos são muito diferentes na forma e apresentação, mas complementares em seus conceitos. Claudia Jaguaribe criou uma nova paisagem carioca onde a impossibilidade factual é o leitmotiv (motivo condutor) para suas construções com base em imagens reais. Ou seja, ela constrói uma paisagem peculiar e muito pessoal usando elementos da natureza real. Leva-se um bom tempo para notar a proposta caso o observador não seja muito conhecedor da geografia carioca.
A opção de Claudia Jaguaribe pela cor só reforça essa possibilidade do simulacro, assim como o formato não convencional: a grande maioria em panorâmicas verticais, curiosamente a levando de volta a Ferrez e seus experimentos com formatos inusitados no início do século 20. Uma mostra de como a mídia se reinventa sistematicamente por meio dos produtores mais criativos.
Já Marcelo Zocchio assume diretamente a transformação da paisagem paulistana. Primeiro ao trabalhar em preto e branco, cuja dramatização e o conceito estão instaurados na liturgia da arte contemporânea. E inclui como elemento diferencial ao factual a transitoriedade do tempo, feita de maneira assumida em fusões com imagens de diferentes décadas do mesmo local fotografado. A questão temporal é algo que impele muitos criadores ao desafio de ora se entregar ao conceito como forma de representação, ora como opção por manter uma imagem com longevidade suficiente para cumprir seu papel, seja na arte ou no documental. Zocchio absorve as duas propostas e sugere ao observador várias leituras sobre o mesmo tema.

Transitoriedade da paisagem
O arquiteto e crítico Guilherme Wisnik, que escreve sobre Repaisagem São Paulo, vai buscar em Lévi-Strauss (1908-2009) uma abordagem interessante sobre a transitoriedade da paisagem paulistana imbuída de precariedade e opulência. Para o filósofo francês, no livro Tristes Trópicos, publicado originalmente na França em 1955, as cidades da América tendem a passar da barbárie à decadência sem conhecer a civilização.
Para Wisnik, a fotografia de Marcelo Zocchio “se alimenta dessa estranha condição presente na cidade”. Para o arquiteto, essa transição proposta por Lévi-Strauss significa que “as cidades estão ao mesmo tempo em construção e em ruína”. Essa simultaneidade das informações visuais, vislumbrada no trabalho de Zocchio, também é abordada por Sérgio Burgi, diretor da área de fotografia do Instituto Moreira Salles, (que gerencia o acervo de Marc Ferrez), quando comenta a obra Entre Morros, de Claudia Jaguaribe. Para ele, a artista busca uma interpretação do cenário urbano carioca refletindo sobre o momento presente da cidade, “em particular nas áreas urbanas de fronteira, onde se desenvolvem intensas interações entre o espaço construído e o espaço natural”.


Coincidentemente ou não, muitas das imagens em Repaisagem São Paulo também promovem o confronto entre os limites do urbano mais atual representado pelos edifícios e aquele mais antigo, representado pelas largas avenidas e pelo pouco de verde que a cidade ainda dispunha nos tempos de Guilherme Gaensly (1843-1928), um dos fotógrafos de cujas imagens o artista se apropria. Isso fica nítido quando se vê a avenida Paulista de 1900 e a de 2012.
Releituras ou não, ambos os trabalhos são eficientes nas propostas, ao confrontar questões muito contemporâneas que ultrapassam os limites do documental para provocar uma reflexão sobre a entropia na qual as duas metrópoles navegam. Embora esse caráter filosófico apareça, é na estética forjada por eles que a fotografia se sustenta como arte de qualidade.