A religiosidade é um tema recorrente na fotografia, mas é sempre um desafio. Para ir longe nele, é necessário que o fotógrafo decifre seus meandros, tenha uma imersão no meio, compreenda as complexas estruturas dos espiritualismos peculiares. Ou seja, não basta fotografar a Festa de Iemanjá ou o Círio de Nazaré, é preciso muito mais em tempo e dedicação. Daí a importância de documentaristas como o paraense Guy Veloso, que se aprofundou na questão por 17 anos e publica no livro Penitentes momentos dessa longa jornada.
Graduado em Direito e com um emprego público, Veloso decidiu em 1993 que seu destino era a fotografia após uma viagem na rota francesa do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Os 800 km de caminhada fizeram com que ele descobrisse o gosto pelas imagens, em especial as que buscavam retratar a fé e as crenças. Iniciado na área com cursos e workshops quando tinha 18 anos de idade, a ideia passou a ser definitiva ou “para a vida toda”, como gosta de dizer atualmente, aos 50 anos.
Por morar em Belém (PA), conta que quando criança ele ficava impressionado com a trasladação (romaria) do Círio de Nazaré, que passava em frente à casa de sua avó.
Porém, o fotógrafo credita à pintura as inspirações para a fotografia, nas obras de artistas como os holandeses Rembrandt e Bruegel. Entretanto, diz ele: “Como moro na Amazônia, tenho essa influência ameríndia, ou melhor, brasileira. Viajo muito e me identifico com o país inteiro, esse multiculturalismo. A Amazônia me influenciou por sua magnitude, mas também penso nos mestres locais, como Luiz Braga”.


O primeiro passo de uma longa caminhada
Guy Veloso conta que foi pela primeira vez para Juazeiro do Norte (CE) em 1998 – depois vieram outras romarias, como Bom Jesus da Lapa (BA) e Canindé, e ele usava o período de férias do trabalho na época para fotografar. Nesse mesmo ano, o fotógrafo paraense viu um grupo vestido com mantos azuis e cruzes nas costas. Eram os penitentes “Aves de Jesus”, que moravam em um bairro de Juazeiro do Norte em casas pintadas de azul. “Me chamou tanto a atenção que, em 2012, resolvi me dedicar somente aos penitentes e passei a pesquisar pelo Nordeste em busca de outros grupos como aquele”, afirma.
Daí em diante, foram 40 dias por ano em pesquisa nos lugares, e o ano inteiro buscando informações em livros e na internet. Nas pesquisas in loco, ele toma notas e entrevista os chefes dos grupos. Como a maioria dos grupos sai à noite, ele ocupava o dia fazendo contato com folcloristas locais. Nessa jornada por 13 Estados brasileiros, ele acabou se envolvendo tanto que se tornou discípulo de uma confraria centenária na Bahia.
Ele confessa que tudo começou como “um estudo estético saindo à noite para fotografar”. Mas três anos depois me dei conta da importância cultural dessa tradição, que era pouco explorada no Brasil, o que me levou aos encontros pessoais. Percebi que o projeto era algo mais profundo, que abarcava o pessoal, e uma pesquisa antropológica, que me levou ao extremo de ser considerado como um membro. Tive acesso a tudo, aos segredos, podia fotografar em qualquer lugar que eles estivessem”, revela. De início, não quis chamar a atenção para a autoflagelação. Segundo ele, apenas 4% dos 204 grupos catalogados mantêm essa prática. Mas ela está presente nas imagens com o resíduos do sangue nos mantos. Como muitas fotos têm movimento, não ficam tão evidentes.

Obra além da fotografia
Com o livro Penitentes (Editora Tempo d’Imagem-Itaú Rumos, 2019), Guy Veloso crê que cumpriu ao menos uma etapa das quase duas décadas de pesquisa e trabalho. Poucos projetos têm essa extensão no Brasil e raros fotógrafos se aventuram em profundidade. Daí a importância desse documentário não somente para o meio fotográfico, como também para a Antropologia e a Etnografia, em cadência parecida com a do francês Pierre Verger, cuja obra talvez seja a mais conhecida até hoje no País. Já faz algum tempo que pesquisadores da academia deixaram de lado a ambiguidade da imagem e passaram a aceitar os códigos visuais como método de pesquisa ou maneira de estruturar suas narrativas.
O professor doutor Guilherme Ghisoni, coordenador do Laboratório de Pesquisa da Filosofia da Fotografia da Universidade Federal de Goiás, escreve que, embora o sentido da religiosidade seja questionado em uma época que os filósofos já declararam a superação de Deus, como o fundamento da realidade, nas imagens de Guy Veloso “o religamento com o divino é possível por intermédio da exata união entre vida e arte”.
O livro foi um trabalho em harmonia com a curadora paulistana Rosely Nakagawa que começou em 2005, quando ambos ainda não sabiam se ia virar mesmo uma publicação. “Na Bienal de São Paulo de 2010, ela escolheu o trabalho como tema. Assim, ano a ano, eu mandava o resultado das pesquisas. Aí veio o projeto Rumos, do Itaú Cultural, mais de um ano de conversas e enfim o livro saiu”, comenta. Etapa superada, ele se prepara para outras. “A religiosidade é um projeto para a vida toda, não tem como acabar”, define.

