
A fotógrafa Maria Daniel Balcazar encontrou uma mãe de santo em uma comunidade do Rio de Janeiro que lhe disse algo estranho, mas muito positivo: seria ela a autora de um livro que mostraria a riqueza da cultura africana no Brasil. Filha do diplomata boliviano Jaime Balcazar Aranibar, ela nasceu em Nova York, EUA, e, apesar de viver em Washington D.C. desde 2006, tem um trabalho enraizado na América Latina, com interesse especial pelas culturas andina, africana e amazônica, as quais vem fotografando constantemente.
O fato é que dois dias depois da previsão feita pela mãe de santo, o renomado fotógrafo David Alan Harvey analisou o trabalho de Maria Balcazar e não hesitou em transformá-lo, meses depois, no livro Kilombo, editado em 2019 e impresso na Itália. Harvey, espécie de padrinho, professor e amigo da fotógrafa boliviana-americana, considera a publicação uma obra-prima. “Maria nos mostra um olhar de humanidade, uma gentileza estética e uma humilde consciência”, comenta ele – ambos fizeram uma das apresentações on-line, via YouTube, do Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco 2020.
Graduada em Comunicação Social e Jornalismo na Bolívia, Maria Daniel Balcazar é apaixonada por aprender idiomas (domina seis deles, inclusive o português) e estudou Artes na Gerlersborgskolan Art School, em Estocolmo, Suécia. Porém, foi um curso de especialização em Fotografia na Universidade de Boston que sacramentou seu destino profissional. O primeiro emprego na área foi como freelancer para uma revista editada pela Universidade Harvard, em Cambridge, Massachusetts.

Nascida em maio de 1956, Maria Balcazar passou a maior parte de sua vida profissional dedicada às artes plásticas, tendo inclusive fundado uma escola de arte para jovens na periferia de La Paz, capital boliviana. A partir de 2010, depois de se mudar para os EUA, começou a se dedicar à fotografia autoral.
No livro Kilombo, ela dirige o olhar para a religiosidade africana, fruto de suas andanças pelo interior de Minas e da Bahia, além de capitais como São Luiz (MA), Belém (PA), Salvador (BA), Recife (PE) e Rio de Janeiro (RJ). Para ela, quilombo é sinônimo de território de resistência e de transcendência (a palavra africana, de origem Bantu, é grafada com k), algo que hoje está mais ligado aos movimentos contra o racismo e o preconceito. “As palavras sempre podem ser ressignificadas. Kilombo será sempre um território de luta, esperança, resistência e formação de identidade”, afirma ela.
Quando menina, Balcazar morou em Copacabana com os pais, e tem uma ligação afetiva com o Rio. Por isso, ela iniciou esse projeto na capital fluminense em 2015, visitando vários lugares e comunidades onde afrodescendentes vivem e se reúnem para rituais de candomblé, umbanda e de manifestações culturais, como a capoeira e o samba. Na sua busca por imagens espontâneas e verdadeiras, conta que foi recebida como hóspede em casas e locais de culto por pessoas que confiaram no trabalho dela. Fotografou em igrejas, terreiros, favelas e quilombos testemunhando uma extraordinária vitalidade do legado africano que se mostra na vida cotidiana brasileira.
Dos tempos de infância, ela tem lembranças do sincretismo religioso da cidade e da influência do pai, que chegou a ser embaixador da Bolívia no Brasil, na sua formação. “Minha avó materna me levava a cerimônias de Iemanjá nas praias do Rio. Mais tarde, meu pai, que morou no Brasil por mais de 35 anos e se fixou na Bahia até seus últimos dias, atraiu meu coração para a cultura afro-brasileira. Ele compartilhou comigo seu apreço pelas práticas religiosas e artísticas, que estudou durante os anos em que trabalhou na África, no Brasil, no Caribe e na América Central”, informa.


Ensaios em andamento
Inquieta e envolvida profundamente com a cultura latino-americana, seu viés documental vem se ampliando em diferentes projetos simultâneos, como Invisible Custodians (Guardiões Invisíveis, em tradução livre), Julia, Los Herederos del Alba (Os Herdeiros da Aurora), Our Deepest Roots (Nossas Raízes Mais Profundas) e Eros e Thanatos. Em quase todos há uma predileção pelo P&B, em que ela maneja categoricamente seus tons e contrastes, e existem alguns mistos, com imagens coloridas inseridas entre o material P&B.
Los Herederos del Alba, livro que estava sendo impresso na Bolívia na ocasião da entrevista, registra o Carnaval de Oruro, capital folclórica boliviana, terra dos Urus, chamada de “Seres del Alba”, conta Balcazar. Marca o Festival Ito com desfiles e cerimônias que seguem costumes andinos tradicionais, baseados na invocação de Pacha Mama e do Tio Supay, respectivamente as figuras sincretizadas da Virgem Maria e do diabo. “É um legado que se entrelaça com a arte e o trabalho de bordadores, sapateiros e fabricantes de máscaras; entre histórias e lendas, divindades andinas, europeias e a memória dos escravos africanos; entre rituais de combate de comunidades nativas e de arcanjos
e demônios”, comenta ela.
O carnaval é na realidade um evento também religioso, pois todos os anos cerca de 48 grupos folclóricos e fiéis desfilam por 4 km até chegar ao santuário da Virgen del Socavón, padroeira dos mineiros, “deixando rastros de fogo e fumaça e projetando além das fronteiras da Bolívia a luz dos herdeiros da Aurora”, diz a fotógrafa.


Já o trabalho Julia, embora contemporâneo (mas sem abdicar de uma extensa pesquisa documental), é inspirado na poetisa e ativista porto-riquenha Julia de Burgos (1914-1953), que lutou pelos direitos civis das mulheres e também foi defensora da independência de seu país e dos escritores africanos e afro-caribenhos. São imagens que mostram um lado ainda mais poético de Maria Balcazar. “Julia era conhecida por sua coragem, sua visão rebelde e crítica das normas e do convencionalismo da sociedade de seu tempo. O amor pela natureza, o amor e o diálogo com a morte são elementos recorrentes na sua obra poética. Somos todos Julia”, diz a fotógrafa.



O documentário Invisible Custodians é uma busca histórica nos séculos 17 e 18 pelas missões jesuíticas que se estabeleceram entre a bacia do Rio Amazonas e a bacia do Rio de La Plata, na região de Beni e Santa Cruz, na Bolívia, com a missão de evangelizar os povos nômades desses territórios por meio da imersão em sua cultura e língua, sem violência nem destruição, criando assentamentos que se
tornaram economicamente viáveis e autônomos. Segundo a fotógrafa, o conhecimento e a cultura jesuíta europeia se entrelaçaram com a cultura indígena local e se transformaram em um valioso legado que ainda hoje é preservado e conservado.
“Trabalhar nessas comunidades e observá-las em suas vidas diárias me ensinou seu profundo entendimento sobre preservação e conservação não apenas de seu legado, mas também da natureza. Acho que poderíamos aprender com esses guardiões invisíveis a criar riqueza na escassez em vez de criar resíduos na riqueza porque todos os dias impactamos nosso planeta”, reflete a fotógrafa.

